Advogado escreve brilhante artigo sobre o toque de acolher, inclusive citando o toque em Países do 1º Mundo
"Prezado Dr. José Brandão Netto:
Quero parabenizar-te pela adoção da medida preventiva conhecida como “toque de acolher”. Os resultados positivos que surgiram daí são provas de que a medida era necessária para diminuir a situação de risco social em que muitos jovens da sua região se encontravam.
É certo que alguns têm objeções de ordem técnico-jurídica quanto ao “toque de acolher”, tachando-o de inconstitucional, ilegal ou coisa parecida; mas todas estas objeções pecam pelo caráter extremamente absoluto que atribuem aos direitos de liberdade e de ir e vir das pessoas. Alguns chegam até a invocar o direito de liberdade garantido em pactos internacionais para gritar contra a medida. Não conseguem enxergar, porém, as consequências positivas dela.
Sua medida é uma prova cabal da teoria chamada de “consequencialismo jurídico”. A adequação de uma medida jurídica passa também pela avaliação de suas consequências. E olhar o direito também em razão de suas consequências é uma forma inteligente de aplicá-lo com o objetivo de atender aos fins sociais a que lei se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Medidas similares, aliás, são adotadas em várias partes do mundo, tanto por ato legislativo (leis), quanto até mesmo por ato administrativo. Lá elas são conhecidas basicamente como child curfew zones (ou, quase literalmente, como “zonas com horário de recolhimento das crianças”). Nem por isto a medida é vista na maior parte destes locais como algo inconstitucional, ilegal ou coisa parecida.
No Reino Unido, por exemplo, há medida que proíbe a circulação de crianças menores de 16 anos e desacompanhadas dos pais ou responsáveis das 21 horas às 6 horas. A seção (ou artigo, como é da nossa tradição) 30, alínea 6, da Lei de Comportamento Anti-Social de 2003 [a Anti Social Behaviour Act 2003] impõe restrição de circulação destes menores, inclusive atribuindo alguma discricionariedade à polícia para avaliar a situação concreta e, se for o caso de algum prejuízo ou dano ao menor, não removê-lo para o local de sua residência. Esta previsão legal, contudo, foi suspensa num caso concreto de 2005 em que um garoto de 15 anos morador de Richmond alegou perante o Tribunal que a medida lhe igualava a suspeitos de práticas delituosas (a discussão jurídica girava mais ao redor do princípio da presunção de inocência que propriamente quanto à liberdade de ir e vir; e isto porque se associou a idéia de criminalização àquela previsão legal). O Tribunal acolheu a argumentação e suspendeu os efeitos desta lei para o caso deste menor. Parece-me que houve recurso do governo e ainda não há um pronunciamento final sobre o caso (salvo engano). O governo, mesmo assim, considera a medida legal e salutar, já que prima pela intervenção antes que o menor tenha algum prejuízo (a sua vida, saúde, segurança etc.) ou incorpore algum hábito negativo.
Tirando este caso do Reino Unido, em que o questionamento judicial está presente, outros países aplicam a medida sem maiores problemas.
Nos Estados Unidos, a legislação sobre o assunto é preponderantemente estadual. Cada Estado da federação, portanto, dita a matéria. E alguns Estados e muitas cidades adotam o curfew. O Havaí tem uma lei estadual há muito tempo. Estados como Georgia, Minnesota, Ohio, Tennessee e Texas incentivaram suas cidades a expedir medidas de restrição de circulação para os menores. Nos anos 80, quando a criminalidade juvenil e a violência contra menores atingiram índices alarmantes, o curfew foi adotado em inúmeras localidades. Mais: lá há até restrição de circulação durante o dia, proibindo crianças e jovens de frequentarem determinados locais no horário escolar (como forma de evitar que o menor falte a aula para ir, p. ex., a um cinema).
Em uma pesquisa de dezembro de 1995 com 1.000 cidades com população superior a 30.000 habitantes (a Cities with Curfews Trying to Meet Constitutional Test, Wash. Post, Dec. 26, 1995), descobriu-se que 70% das cidades que responderam à pesquisa (foram 387) tinham em vigor alguma medida de restrição de circulação de menores. Além disso, outros 6% das cidades estavam estudando a adoção da medida.
Desde 1994, várias cidades que editaram leis de restrição à circulação de menores (ou emendaram leis anteriores), como Austin (Texas), Phoenix (no Arizona), Buffalo (no Estado de Nova Iorque), San Jose (na Califórnia) e Oklahoma City (no Estado de Oklahoma).
A medida chegou até a ser discutida em âmbito federal no programa de “Iniciativa para Reforma da Justiça da Infância e Adolescência” dos anos 90 (a Juvenil Justice Reform Iniciatives of United States 1994-1996”).
Os Tribunais, de um modo geral, têm aceitado a validade jurídica do curfew nos poucos casos que chegam para análise e decisão. O caso Qutb v. Bartlett julgado pela Corte de Apelação do 5º Circuito sustentou a validade jurídica da medida restritiva expedida pela cidade de Dallas, no Texas. Afirmou-se, nesta decisão, que a medida era constitucional mesmo que restringisse um direito fundamental. No caso Hutchins v. District of Columbia, o Tribunal do Distrito de Columbia (“DC”) também considerou a lei local de restrição de horário de circulação expedida em 1995 constitucional; aqui, ele inclusive apoiou sua decisão em estatísticas de redução dos eventos em que o menor foi vítima de crimes ou praticou um deles. Além disso, o Tribunal do DC disse que a medida era válida em razão de três objetivos: (1) proteger as crianças e adolescentes de tornarem-se vítimas ou praticantes de delitos; (2) assistência aos pais no exercício de suas responsabilidades sobre os menores; e (3) prevenir todas as pessoas de perigos que possam vir a ser causados ou sofridos por menores desacompanhados que estejam tarde da noite ou de manhã bem cedo nas ruas.
Boa literatura norte-americana sobre o tema está em: (i) Handbook of Juvenile Justice – Theory and Pratice, de Barbara Sims; CRC Press, 2006, pp. 275-294; (ii) Historical Guide to Controversial Issues in American Juvenile Justice, de Laura L. Finley, p. 110 e ss.; (iii) Juvenile Justice: An Introduction, de John T. Whitehead, p. 190 em diante; (iv) Juvenile justice: a social, historical, and legal perspective, de Preston Elrod e R. Scott Ryder, p. 442 e ss.
Na Islândia, há uma lei de proteção a criança [a Iceland's Child Protection Act (nº 80/2002)] que proíbe: a) a circulação de crianças menores de 12 anos nas ruas após as 20h, a menos que estejam acompanhadas de seus pais ou responsáveis; b) a circulação de crianças com idade de 13 a 16 anos nas ruas após as 22h, a menos que elas estejam no caminho de casa após um evento realizada pela escola, por uma organização esportiva ou por um clube da juventude.
Na Dinamarca, as polícias de duas cidades (Silkeborg e Slagelse) estão detendo os jovens e crianças que estiverem nas ruas entre a meia-noite e 5h da manhã e entrando em contato com os pais ou responsáveis a fim de que os recolham ao domicílio.
Os exemplos ao redor do mundo, se não garantem que a medida é juridicamente hígida perante o nosso ordenamento, pelo menos servem como fundamento genérico da não irrazoabilidade dela.
Parabéns pela medida!
Leandro Santos de Aragão (advogado em São Paulo)"
Quero parabenizar-te pela adoção da medida preventiva conhecida como “toque de acolher”. Os resultados positivos que surgiram daí são provas de que a medida era necessária para diminuir a situação de risco social em que muitos jovens da sua região se encontravam.
É certo que alguns têm objeções de ordem técnico-jurídica quanto ao “toque de acolher”, tachando-o de inconstitucional, ilegal ou coisa parecida; mas todas estas objeções pecam pelo caráter extremamente absoluto que atribuem aos direitos de liberdade e de ir e vir das pessoas. Alguns chegam até a invocar o direito de liberdade garantido em pactos internacionais para gritar contra a medida. Não conseguem enxergar, porém, as consequências positivas dela.
Sua medida é uma prova cabal da teoria chamada de “consequencialismo jurídico”. A adequação de uma medida jurídica passa também pela avaliação de suas consequências. E olhar o direito também em razão de suas consequências é uma forma inteligente de aplicá-lo com o objetivo de atender aos fins sociais a que lei se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Medidas similares, aliás, são adotadas em várias partes do mundo, tanto por ato legislativo (leis), quanto até mesmo por ato administrativo. Lá elas são conhecidas basicamente como child curfew zones (ou, quase literalmente, como “zonas com horário de recolhimento das crianças”). Nem por isto a medida é vista na maior parte destes locais como algo inconstitucional, ilegal ou coisa parecida.
No Reino Unido, por exemplo, há medida que proíbe a circulação de crianças menores de 16 anos e desacompanhadas dos pais ou responsáveis das 21 horas às 6 horas. A seção (ou artigo, como é da nossa tradição) 30, alínea 6, da Lei de Comportamento Anti-Social de 2003 [a Anti Social Behaviour Act 2003] impõe restrição de circulação destes menores, inclusive atribuindo alguma discricionariedade à polícia para avaliar a situação concreta e, se for o caso de algum prejuízo ou dano ao menor, não removê-lo para o local de sua residência. Esta previsão legal, contudo, foi suspensa num caso concreto de 2005 em que um garoto de 15 anos morador de Richmond alegou perante o Tribunal que a medida lhe igualava a suspeitos de práticas delituosas (a discussão jurídica girava mais ao redor do princípio da presunção de inocência que propriamente quanto à liberdade de ir e vir; e isto porque se associou a idéia de criminalização àquela previsão legal). O Tribunal acolheu a argumentação e suspendeu os efeitos desta lei para o caso deste menor. Parece-me que houve recurso do governo e ainda não há um pronunciamento final sobre o caso (salvo engano). O governo, mesmo assim, considera a medida legal e salutar, já que prima pela intervenção antes que o menor tenha algum prejuízo (a sua vida, saúde, segurança etc.) ou incorpore algum hábito negativo.
Tirando este caso do Reino Unido, em que o questionamento judicial está presente, outros países aplicam a medida sem maiores problemas.
Nos Estados Unidos, a legislação sobre o assunto é preponderantemente estadual. Cada Estado da federação, portanto, dita a matéria. E alguns Estados e muitas cidades adotam o curfew. O Havaí tem uma lei estadual há muito tempo. Estados como Georgia, Minnesota, Ohio, Tennessee e Texas incentivaram suas cidades a expedir medidas de restrição de circulação para os menores. Nos anos 80, quando a criminalidade juvenil e a violência contra menores atingiram índices alarmantes, o curfew foi adotado em inúmeras localidades. Mais: lá há até restrição de circulação durante o dia, proibindo crianças e jovens de frequentarem determinados locais no horário escolar (como forma de evitar que o menor falte a aula para ir, p. ex., a um cinema).
Em uma pesquisa de dezembro de 1995 com 1.000 cidades com população superior a 30.000 habitantes (a Cities with Curfews Trying to Meet Constitutional Test, Wash. Post, Dec. 26, 1995), descobriu-se que 70% das cidades que responderam à pesquisa (foram 387) tinham em vigor alguma medida de restrição de circulação de menores. Além disso, outros 6% das cidades estavam estudando a adoção da medida.
Desde 1994, várias cidades que editaram leis de restrição à circulação de menores (ou emendaram leis anteriores), como Austin (Texas), Phoenix (no Arizona), Buffalo (no Estado de Nova Iorque), San Jose (na Califórnia) e Oklahoma City (no Estado de Oklahoma).
A medida chegou até a ser discutida em âmbito federal no programa de “Iniciativa para Reforma da Justiça da Infância e Adolescência” dos anos 90 (a Juvenil Justice Reform Iniciatives of United States 1994-1996”).
Os Tribunais, de um modo geral, têm aceitado a validade jurídica do curfew nos poucos casos que chegam para análise e decisão. O caso Qutb v. Bartlett julgado pela Corte de Apelação do 5º Circuito sustentou a validade jurídica da medida restritiva expedida pela cidade de Dallas, no Texas. Afirmou-se, nesta decisão, que a medida era constitucional mesmo que restringisse um direito fundamental. No caso Hutchins v. District of Columbia, o Tribunal do Distrito de Columbia (“DC”) também considerou a lei local de restrição de horário de circulação expedida em 1995 constitucional; aqui, ele inclusive apoiou sua decisão em estatísticas de redução dos eventos em que o menor foi vítima de crimes ou praticou um deles. Além disso, o Tribunal do DC disse que a medida era válida em razão de três objetivos: (1) proteger as crianças e adolescentes de tornarem-se vítimas ou praticantes de delitos; (2) assistência aos pais no exercício de suas responsabilidades sobre os menores; e (3) prevenir todas as pessoas de perigos que possam vir a ser causados ou sofridos por menores desacompanhados que estejam tarde da noite ou de manhã bem cedo nas ruas.
Boa literatura norte-americana sobre o tema está em: (i) Handbook of Juvenile Justice – Theory and Pratice, de Barbara Sims; CRC Press, 2006, pp. 275-294; (ii) Historical Guide to Controversial Issues in American Juvenile Justice, de Laura L. Finley, p. 110 e ss.; (iii) Juvenile Justice: An Introduction, de John T. Whitehead, p. 190 em diante; (iv) Juvenile justice: a social, historical, and legal perspective, de Preston Elrod e R. Scott Ryder, p. 442 e ss.
Na Islândia, há uma lei de proteção a criança [a Iceland's Child Protection Act (nº 80/2002)] que proíbe: a) a circulação de crianças menores de 12 anos nas ruas após as 20h, a menos que estejam acompanhadas de seus pais ou responsáveis; b) a circulação de crianças com idade de 13 a 16 anos nas ruas após as 22h, a menos que elas estejam no caminho de casa após um evento realizada pela escola, por uma organização esportiva ou por um clube da juventude.
Na Dinamarca, as polícias de duas cidades (Silkeborg e Slagelse) estão detendo os jovens e crianças que estiverem nas ruas entre a meia-noite e 5h da manhã e entrando em contato com os pais ou responsáveis a fim de que os recolham ao domicílio.
Os exemplos ao redor do mundo, se não garantem que a medida é juridicamente hígida perante o nosso ordenamento, pelo menos servem como fundamento genérico da não irrazoabilidade dela.
Parabéns pela medida!
Leandro Santos de Aragão (advogado em São Paulo)"
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