Nagibe de Melo Jorge Neto
Toda vez que se fala de privilégios da magistratura, a mídia lembra as férias de 60 dias dos juízes, sempre no tom de que isso é acinte ao cidadão comum. Ao contrário do que muita gente pensa, os juízes não têm quaisquer privilégios ou regalias. É preciso desmistificar isso! Tais regalias existem somente no imaginário da população, resquício de um tempo em que os juízes vinham da aristocracia. Hoje, não sobrou nada, só a sanha persecutória da mídia.
O raciocínio é simples: a Justiça brasileira não funciona a contento, logo, a culpa é do juiz. Os mais apressados em achar um culpado esquecem que há um conjunto de fatores que contribuem para o mal funcionamento da justiça no Brasil. Leis lenientes com os acusados no processo criminal (o novo código de processo penal está em discussão no Congresso Nacional); grande número de recursos; em muitos estados, o Poder Judiciário não tem uma mínima estrutura de funcionamento; em alguns municípios, os servidores responsáveis pela tramitação dos processos são cedidos pela Prefeitura ou pela Câmara Municipal, muitas vezes sem a adequada qualificação; o aparato policial normalmente é fraco e com pouca ou nenhuma capacidade para investigar crimes mais complexos, como os de corrupção e de colarinho branco; em muitos municípios sequer há delegado de polícia. Esquecem também que a justiça brasileira tem muitas ilhas de excelência: os Juizados Especiais Federais, onde um processo é julgado em aproximadamente seis meses, são apenas um exemplo.
Ao invés de discutir seriamente as causas do mal funcionamento da justiça, pegamos um atalho. Encontramos um Judas, o juiz! Agora basta enforcá-lo e queimá-lo. Estará tudo resolvido em pouco tempo! É assim que o Brasil tem enfrentado seus problemas e é por isso que não conseguimos resolvê-los, embora nos tenhamos tornado cada vez melhores em multiplicá-los. Por último veio a notícia de que a Corregedoria-Geral do Conselho Nacional de Justiça quebrou o sigilo de 205 mil pessoas, dentre juízes, servidores, parentes e aderentes, sem o devido processo legal, sem o pronunciamento, sequer, do plenário do CNJ. Viu como é fácil resolver tudo?
Os juízes são servidores públicos cujo trabalho tem algumas especificidades que constantemente limitam sua liberdade. Um juiz não pode, por exemplo, frequentar o lugar que quiser, quando quiser com quem quiser, nem desenvolver a atividade comercial que quiser, como não pode ocupar qualquer outra função, pública ou privada, a não ser uma de professor. O juiz não pode nem mesmo ser síndico de seu próprio condomínio.
O juiz ganha um salário que varia entre cerca de doze mil e quatorze mil reais. Mesmo os juízes mais velhos, com vinte ou trinta anos de serviço, recebem esse mesmo valor. Isso é tudo. Não há carros à sua disposição nem qualquer outra verba, nada. No ano passado lutávamos para receber o auxílio-alimentação, o vale refeição que grande parte dos trabalhadores brasileiros também recebe.
A maioria das pessoas não entende ou simplesmente não quer entender por que os juízes têm férias de 60 dias, mas é fácil perceber. As férias de 60 dias são uma justa compensação pelo regime especial de trabalho do juiz, que importa o seguinte:
a) os juízes não têm horário fixo de trabalho. Estão obrigados a atender urgências em qualquer hora do dia ou da noite e em qualquer lugar. Isso é mais freqüente do que se pensa. Além disso, nos processo do Tribunal do Júri, nas sessões de julgamento dos Tribunais e das Turmas Recursais dos Juizados Especiais e também nas varas com pauta de audiências mais pesadas, a jornada de trabalho costuma ultrapassar bem mais de oito horas diárias;
b) os juízes não recebem horas-extras nem têm qualquer regime de compensação de horas;
c) os juízes não recebem por plantões, nem pelo atendimento feito fora do horário normal de expediente;
d) os juízes não recebem por substituições, quando respondem por duas, às vezes por três unidades jurisdicionais. Também não recebem pela cumulação de funções, como Direção do Foro, quando um juiz é designado para cuidar da parte administrativa e das instalações do fórum. Nesses casos o trabalho dobra, mas o ganho permanece o mesmo;
e) os juízes não recebem adicional de periculosidade, mesmo quando têm sua vida ameaçada, o que não é raro acontecer;
f) os juízes não recebem por produtividade, ainda que sejam responsáveis pelo atingimento de diversas metas, tanto as que são estabelecidas pelo seu Tribunal, como as que são estabelecidas pelo CNJ. A Corregedoria de cada Tribunal fiscaliza o atingimento dessas metas e o seu não cumprimento pode prejudicar a promoção dos juízes;
g) constantemente os juízes precisam trabalhar muito além do horário normal do expediente para atingir metas. Durante o expediente, boa parte do tempo do juiz é gasto na coordenação de tarefas, reexame do trabalho dos servidores, formação de grupo de trabalhos, audiência com as partes e seus advogados etc. O juiz, durante o expediente, não se dedica somente a proferir sentenças e decisões;
h) os juízes são responsáveis pelo julgamento e estudo de processos de diversas complexidades e, por isso, dedicam boa parte do tempo fora do expediente ao estudo de processos de maior complexidade, quando têm mais tranqüilidade;
i) os juízes também dedicam boa parte do tempo fora do expediente à atualização em diversas matérias, leitura de obras jurídicas, estudo das decisões do Supremo Tribunal, dos Tribunais Superiores e do seu próprio Tribunal;
j) dizer que médico tem igual ou maior responsabilidade e tem férias de 30 dias é uma falácia, já que a maioria dos médicos tem horário fixo de trabalho; quando não tem, ganha por produtividade, quanto mais consulta, quanto mais horas trabalha, maior o ganho;
k) diversas categorias têm regime de trabalho diferenciado de acordo com suas especificidades, tais quais professores, que não podem dar mais de 04 aulas consecutivas (art. 318, da CLT); os advogados, que têm jornada diária de 04 horas de trabalho (Estatuto da OAB), os jornalistas, 05 horas diárias (art. 302, da CLT), os bancários, 06 horas diárias (art. 224, CLT) etc. Todas essas categorias recebem por horas-extras e pelo trabalho realizado fora do horário do expediente.
Tudo isso é claro, mas quem tem coragem para defender o que é justo apesar dos clamores da turba? O fim das férias de 60 dias implicará, de certo, menor atratividade da carreira da magistratura e juízes mais despreparados, com menos tempo para dedicarem-se ao estudo e à atualização. Muitos juízes produzem suas dissertações de mestrado e teses de doutorado durante as férias e tantos outros dedicam parte de suas férias ao estudo de matérias jurídicas.
A perseguição constante e sem trégua contra a magistratura tem deixado os juízes desalentados. Outro dia encontrei um amigo, Juiz de Direito em uma pequena cidade no interior do Ceará. Ele me confessou que começou a se preparar para o concurso de Procurador do Estado. O ganho é o mesmo, trabalhará apenas meio expediente e ainda lhe será permito advogar, o que lhe garantirá polpudos ganhos extras. Eu lhe disse:
- Essa incompreensão com a magistratura um dia passa...
- Quando? Ele me perguntou meio descrente.
Fiquei sem resposta. Talvez quando enforcarem e queimarem o Judas.
(*) O autor é Mestre em Direito pela UFC. MBA em Poder Judiciário pela FGV/Rio. Autor dos livros O Controle Jurisdicional das Políticas Públicas e Sentença Cível: teoria e prática. Copiado do Mural de Vitor Bezerra
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