Jurista fala sobre Direito real de laje
Direito real de laje: primeiras impressões
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Santiago Ribeiro (santiagomaquetes.blogspot.com.br)
O direito de laje é o
direito real sobre a unidade imobiliária autônoma erigida sobre a
propriedade de outrem. Ou seja, foi concedido status oficial ao direito
sobre o “puxadinho”. O legislador preferiu conferir autonomia a este
direito, desgarrando-o da disciplina da superfície.
1. Introdução
A Medida Provisória nTrata-se do direito real de laje.
Com justiça, o excelente FLAVIO TARTUCE[2] adverte que o tema já havia sido enfrentado, em doutrina, por grandes autores brasileiros, a exemplo de RODRIGO MAZZEI e RICARDO PEREIRA LIRA.
Segundo o AURELIO, “laje”, substantivo feminino, significa "1. Pedra de superfície plana ger. quadrada ou retangular; lousa: 'eu fazia a volta dentro do pátio revestido de lajes' (Osmã Lins, Nove, Novena, p. 156). 2. Constr. Obra contínua de concreto armado, a qual constitui sobrado, teto de um compartimento, ou piso. [F. paral.: laja e lájea. Var.: lajem. Dim. irreg.: lajota.]”[3].
O instituto consagrado pelo novo diploma mais se aproxima do segundo significado apresentado pelo dicionarista, uma vez que consiste no direito real sobre a unidade imobiliária autônoma erigida sobre a propriedade de outrem.
Em linguagem tipicamente brasileira, fora concedido status oficial ao direito sobre o “puxadinho”.
Em verdade, poderia o legislador, em vez de inaugurar disciplina específica, tratar do instituto no âmbito do próprio direito de superfície, como bem observa ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JR.:
"O que caracteriza o direito de superfície e distingue o seu tipo dos demais direitos reais é a possibilidade de constituir um direito tendo por objeto construção ou plantação, separadamente do direito de propriedade sobre o solo.Na mesma linha, OTAVIO LUIZ RODRIGUES JR. e RODRIGO MAZZEI:
Em sentido mais técnico, há superfície quando se suspende os efeitos da acessão sobre uma construção ou plantação a ser realizada ou já existente. O implante que, por força da acessão, seria incorporado ao solo, passa a ser objeto de um direito real autônomo, o direito real de superfície.
Vê-se que, a partir dessa definição de direito de superfície, sequer seria necessário prever expressamente a possibilidade de sua constituição para a construção no espaço aéreo ou para o destacamento de pavimentos superiores já construídos. Da mesma forma, é desnecessária a menção expressa à possibilidade de superfície constituída sobre construções no subsolo. Se é possível construir no espaço aéreo ou no subsolo e essas construções sofrem, de ordinário, os efeitos da acessão, pode-se tê-las como objeto do direito real de superfície.
Do próprio tipo da superfície deriva a possibilidade de sobrelevação, portanto.
(…)
Se o que se queria era ressaltar a possibilidade do direito de superfície por sobrelevação, bastava para tanto inserir um artigo no título V do livro do direito das coisas. Para acrescentar à disciplina do direito de superfície a possibilidade de abertura de matrícula separada para a propriedade superficiária e a desnecessidade de atribuição de fração ideal do terreno, outros dois artigos bastariam”.[4]
“Enfim, o novo direito de laje não merece monopolizar toda a coluna. Sobre ele, por certo, escrever-se-ão futuras colunas na Direito Civil Atual nos próximos meses. Deve-se, porém, registrar o assombro com a falta de cuidado técnico na elaboração dessa norma, especialmente porque soluções muito mais adequadas poderiam ter sido alcançadas com o já existente direito de superfície.”[5]
“Pensamos na aplicação da sobrelevação não como instrumento para a criação de obras e construções com muitos fracionamentos, mas com moldagem para permitir o direito à laje, com a regularização de diversas situações hoje já criadas (…) não podemos esquecer a motivação com que foi trazido o direito de superfície pra o quadro legal pátrio contemporâneo, eis que deve ser visto como instrumento da função social (…)"[6]A despeito dessas argutas ponderações, o legislador preferiu conferir autonomia a este direito, desgarrando-o da disciplina da superfície.
E, embora a nova regulamentação não resolva a delicada questão social atinente ao crescimento urbano desordenado - que exige, não apenas promessas ou leis, mas sérias políticas públicas -, ao menos retirou do "limbo da invisibilidade" uma situação social tão comum nas cidades brasileiras.
Imaginemos, a título meramente ilustrativo, o sujeito que constrói um segundo andar em sua casa, conferindo-lhe acesso independente, e, em seguida, transfere o direito sobre o mesmo, mediante pagamento, para um terceiro, que passa a morar, com a sua família, nesta unidade autônoma.
Não se tratando, em verdade, de transferência de “propriedade" - que abrangeria, obviamente, o solo -, este terceiro passa a exercer direito apenas sobre a extensão da construção original, ou seja, sobre a laje.
Trata-se, portanto, de um direito real sobre coisa alheia - com amplitude considerável, mas que com a propriedade não se confunde -, limitado à unidade imobiliária autônoma erigida sobre a construção original, de propriedade de outrem.
Melhor seria, em nosso sentir, que se utilizasse a expressão “direito sobre a laje”, como empregado no Enunciado 18, da I Jornada dos Juizes das Varas de Família da Comarca de Salvador:
Enunciado no 18 - Nos termos do regime de bens aplicável, admite-se, em nível obrigacional, a comunicabilidade do direito sobre a construção realizada no curso do casamento ou da união estável – acessão artificial socialmente conhecida como “direito sobre a laje” -, subordinando-se, todavia, a eficácia real da partilha ao regular registro no Cartório de Imóveis, a cargo das próprias partes, mediante recolhimento das taxas ou emolumentos e tributos devidos[7].Note-se que, na hipótese do enunciado, não se discute direito real de terceiro sobre a laje, mas sim, a disciplina própria do direito à meação sobre a extensão construída do imóvel, segundo o regime de bens aplicável.
O instituto de que estamos aqui a tratar, como vimos, tem natureza diversa (real) e diz respeito à esfera jurídica de terceiro que, com exclusividade, imprime, em perspectiva constitucional, destinação socioeconômica sobre a unidade imobiliária autônoma sobreposta.
2. Direito Real Autônomo
É digno de nota que os direitos reais, diferentemente dos pessoais ou obrigacionais (a exemplo de um direito de crédito), não podem derivar, direta e exclusivamente, da manifestação volitiva das partes, uma vez que, dentre as suas características, destaca-se a legalidade.Sobre o tema, já tivemos a oportunidade de escrever:
"Nesse diapasão, com fundamento na doutrina do genial ARRUDA ALVIM, poderíamos enumerar as seguintes características dos direitos reais, para distingui-los dos direitos de natureza pessoal:Com efeito, a Medida Provisória n
a) legalidade ou tipicidade — os direitos reais somente existem se a respectiva figura estiver prevista em lei (art. 1.225 do CC-02);
b) taxatividade — a enumeração legal dos direitos reais é taxativa (numerus clausus), ou seja, não admite ampliação pela simples vontade das partes;
c) publicidade — primordialmente para os bens imóveis, por se submeterem a um sistema formal de registro, que lhes imprime essa característica;
d) eficácia erga omnes — os direitos reais são oponíveis a todas as pessoas, indistintamente. Consoante vimos acima, essa característica não impede, em uma perspectiva mais imediata, o reconhecimento da relação jurídica real entre um homem e uma coisa. Ressalte-se, outrossim, que essa eficácia erga omnes deve ser entendida com ressalva, apenas no aspecto de sua oponibilidade, uma vez que o exercício do direito real — até mesmo o de propriedade, mais abrangente de todos — deverá ser sempre condicionado (relativizado) pela ordem jurídica positiva e pelo interesse social, uma vez que não vivemos mais a era da ditadura dos direitos;
e) inerência ou aderência — o direito real adere à coisa, acompanhando-a em todas as suas mutações. Essa característica é nítida nos direitos reais em garantia (penhor, anticrese, hipoteca), uma vez que o credor (pignoratício, anticrético, hipotecário), gozando de um direito real vinculado (aderido) à coisa, prefere outros credores desprovidos dessa prerrogativa;
f) seqüela — como conseqüência da característica anterior, o titular de um direito real poderá perseguir a coisa afetada, para buscá-la onde se encontre, e em mãos de quem quer que seja. É aspecto privativo dos direitos reais, não tendo o direito de seqüela o titular de direitos pessoais ou obrigacionais".[8]
A sua disciplina, outrossim, está contida logo após as normas da anticrese (arts. 1.506 a 1.510), no art. 1.510-A, do Código Civil.
3. Tratamento Jurídico
Na vereda do art. 1.510-A, conclui-se que este novo direito real é exercido sobre a unidade imobiliária autônoma sobrelevada, erigida sobre a construção original, de propriedade de outrem:Art. 1.510-A. O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.Como já ressaltamos, não se trata de uma “propriedade” sobre a laje, eis que, se de propriedade se tratasse, o direito exercido seria “na coisa própria” e abrangeria o próprio solo, o que não se dá na hipótese vertente.
Até porque este novo direito real somente será admitido "quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos” (§ 1
Consiste, pois, em um direito real limitado à estrutura autônoma construída (laje), desde que a unidade imobiliária sobreposta, qualquer que seja o seu uso, seja dotada de:
- isolamento funcional;
- acesso independente.
Além disso, a via de acesso ou ingresso à unidade deverá ser independente, a exemplo de uma escada exclusiva para o segundo pavimento da construção.
Em nosso sentir, diante da realidade urbanística brasileira, caracterizada pelo crescimento desordenado, o requisito do “acesso independente” deve ser interpretado com equilíbrio e cautela, na medida em que, utilizando o mesmo exemplo acima figurado, uma mesma escada poderá servir, simultaneamente, para o titular da laje e para o vizinho que habita unidade sobrelevada contígua.
A finalidade da norma, certamente, é no sentido de que este acesso seja independente em face do proprietário da construção original do imóvel sotoposto (abaixo localizado).
Nesse ponto, dada a sua importância, merece referência a norma legal:
§ 3E um aspecto de tremenda importância, neste dispositivo, deve ser salientado: o legislador determinou que fosse aberta, em favor do titular da laje, matrícula própria.ºConsideram-se unidades imobiliárias autônomas aquelas que possuam isolamento funcional e acesso independente, qualquer que seja o seu uso, devendo ser aberta matrícula própria para cada uma das referidas unidades.
4. Matrícula do Direito Real de Laje
Sem nos afastar do escopo deste artigo, é recomendável passar em breve revista o conceito de matrícula.A matrícula, em linhas gerais, consiste no primeiro número de registro do imóvel, a sua “numeração de registro original”.
Cada nova alienação receberá, por sua vez, novo número de registro, mantendo-se a matrícula original.
Finalmente, “a averbação”, lembra CARLOS ROBERTO GONÇALVES, "é qualquer anotação feita à margem de um registro, para indicar as alterações ocorridas no imóvel, seja quanto a sua situação física (edificação de uma casa, mudança de nome de rua) seja quanto à situação jurídica do seu proprietário (mudança de solteiro para casado, p. ex.)”[10].
A matrícula é regulada nos arts. 224 a 233 da n
Vale destacar os seus dois primeiros dispositivos:
Art. 224. Todo imóvel objeto de título apresentado em cartório para registro, deve estar matriculado no livro n. 2 de Registro Geral, obedecidas as normas estabelecidas no artigo 173.Por óbvio, as normas da LRP deverão ser interpretadas em consonância com as novas regras editadas, constantes na Medida Provisória n
Art. 225. A matrícula será efetuada por ocasião do primeiro registro a ser lançado na vigência da presente Lei, mediante os elementos constantes do título apresentado e do registro anterior no mesmo mencionado, preenchidos os requisitos do artigo 227.
Nesse diapasão, o titular da laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade (§ 4
Além disso, dada a autonomia registral que lhe foi conferida, o § 5
Um ponto, aqui, nos despertou atenção.
Temos certa dúvida quanto ao alcance e constitucionalidade deste dispositivo, na perspectiva do princípio da função social, no que tange à vedação de extensões ou lajes sucessivas.
Uma vez que o legislador cuidou de conceder dignidade legal ao direito sobre a laje, desde que as limitações administrativas e o Plano Diretor sejam respeitados, sobrelevações sucessivas, regularmente edificadas, mereceriam, talvez, o amparo da norma.
Fica o convite à reflexão.
Por fim, interessante serão os reflexos do novo regramento no Direito de Família, na medida em que não é incomum o titular da construção original ceder a unidade sobrelevada a um parente, que passa a exercer direito sobre a unidade autônoma.
Dependendo da circunstância, poderá, até mesmo, operar-se a aquisição do direito real de laje por usucapião, observados os requisitos legais da prescrição aquisitiva.
E mesmo que a cessão seja gratuita, a título de comodato, se o cessionário passa a se comportar como titular exclusivo da laje, alterando o seu animus e a própria natureza da posse precária até então exercida, poderá, em nosso sentir, consolidar o seu direto sobre a construção sobrelevada (direito real de laje), mediante usucapião, contando-se o prazo de prescrição a partir do momento em que deixa de se comportar como simples comodatário, por aplicação da regra da “interversio possessionis”.
5. Conclusão
O legislador, com este novo diploma, certamente não mudará a dura realidade habitacional brasileira que está a exigir políticas públicas mais abrangentes e efetivas, a serem desempenhadas a médio e longo prazos.Ademais, perdeu a oportunidade de tratar da laje em sua ambiência natural, dentro da estrutura normativa do direito real de superfície.
A despeito de tudo isso, temos que a disciplina normativa de uma realidade brasileiríssima como esta confere, ao menos, dignidade legal a milhares de famílias que, até então, viviam em uma espécie de vácuo normativo habitacional.
Mas, para além de uma abstrata “dignidade legal”, o que essas famílias anseiam é pela projeção social e “em concreto” do princípio maior da dignidade da pessoa humana.
E, para tanto, leis não bastam.
Notas
[1] Art. 1[3] https://contas.tcu.gov.br/dicionario/home.asp
[4] ALBUQUERQUE Jr. Roberto Paulino de. O Direito de Laje não é um Novo Direito Real, mas um Direito de Superfície. Disponível no: http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-nao-direito-real-direito-superficie acessado em 04 de janeiro de 2017.
[5] RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Um Ano Longo Demais e os seus Impactos no Direito Civil Contemporâneo, disponível no: http://www.conjur.com.br/2016-dez-26/retrospectiva-2016-ano-longo-impactos-direito-civil-contemporaneo acessado em 04 de janeiro de 2017.
[6] MAZZEI, Rodrigo. O Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro, disponível no: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp040916.pdf acessado em 04 de janeiro de 2017. Este texto é anterior à publicação da MP 759/16.
[7] Fonte: http://www5.tjba.jus.br/images/pdf/enunciados_ordem_numerica.pdf , acessado em 04 de janeiro de 2017.
[8] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil - Obrigações - Vol. 2. 17 ed. São Paulo: Saraiva, págs. 48-49.
[9] § 6
§ 7
[10] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas - Vol. 5. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pág. 309.
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