A tragédia de Brumadinho sob a ótica do Direito Penal
Não se pode classificar o fato ocorrido em Brumadinho como uma tragédia ambiental. Na realidade, os indícios indicam que houve crimes ambientais e delitos previstos no código penal, os quais serão esclarecidos após a conclusão das investigações em curso.
Com efeito, indaga-se o porquê de uma empresa, que lucra mais de 5 (cinco) bilhões por trimestre, não ter tido um plano de contingência para a catástrofe, que incidiu em janeiro de 2019. Não havia nenhum profissional para averiguar a barragem ou o seu estado físico? Os fatos apontam que houve, no mínimo, uma negligência em relação a vidas humanas, e a milhares de espécies de animais, além da flora local.
A imprensa reportou imagens e vídeos de pessoas cobertas por lama tóxica, envoltas de metais pesados, com destruição de casas, e histórias de vida (disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/imagens-aereas-mostram-rastro-de-lama-em-brumadinho-...)
As proporções dos danos ambientais são incomensuráveis. Com efeito, inúmeros peixes e espécies marinhas podem ser extintas, e as que sobreviverem certamente sofrerão o impacto de metais pesados, ocasionando prejuízos à pesca na região.
Conforme preleciona MELODIAS:
"(...) O primeiro grande e irreversível dano dessa tragédia se dá com a morte de dezenas e, possivelmente, centenas de vidas humanas e animais que foram soterradas pela lama. Para os sobreviventes, direta e indiretamente pela lama, o cenário é devastador, além das perdas materiais diretas, milhares de pessoas estão sofrendo e ainda sofrerão danos sociais e psicológicos irreparáveis por toda a vida. Sabemos que as vítimas de tragédias ambientais são acometidas por diversos transtornos mentais como depressão, ansiedade, síndrome do pânico e estresse pós-traumático. Além disso, existem relatos que identificam aumento da incidência do abuso de uso de drogas e suicídio nessas populações. A gente ainda pode pensar nos impactos da saúde que a contaminação da água, do solo e todo o meio ambiente pode afetar nessas populações, que utilizam esses recursos naturais. Essa tragédia, sem precedentes, causou e seguirá causando danos incalculáveis na vida de milhares de pessoas (...)" (preceptora do Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro)
Não se pode olvidar que o meio ambiente constitui direito fundamental da pessoa humana garantido pela Constituição Federal no artigo 225, tendo sido alçado à condição de bem de uso comum do povo e direito de todos os cidadãos, das gerações presentes e futuras, estando o Poder Público e a coletividade obrigados a preservá-lo e a defendê-lo.
Destarte, indaga-se qual seria a responsabilidade criminal, diante de tais fatos, e no presente artigo será discorrido (academicamente) apenas alguns delitos que, em tese, poderão ser objeto de futura denúncia e condenação na justiça criminal, cujas conclusões dependerão do resultado das investigações e da formação da convicção jurídica do membro do Ministério Público (promotor natural do caso), e do julgamento a cargo do Poder Judiciário.
Vale salientar o teor do artigo 3º da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.
A expressão em latim “societas delinquere non potest” significa que a “sociedade não pode delinquir; entretanto, tratando-se de responsabilidade penal, é amplamente debatido na doutrina a possibilidade ( ou não) de uma eventual punição das pessoas jurídicas, uma vez que poderiam se tornar sujeito passivo em crimes crimes ambientais, nos termos do artigo 225, §3º, da Lei Maior.
Com efeito, pode-se cogitar da incidência de homicídio culposo em relação às mortes decorrentes da explosão da barragem ou homicídio doloso (dolo eventual, quando o agente assume o risco da produção do resultado), o que vai depender da conclusão das investigações em curso.
Desta forma, os dirigentes e responsáveis pela administração da barragem poderão responder criminalmente pelos delitos de homicídio, lesões corporais, e delito de inundação ou desabamento, além dos crimes previstos na Lei 9.605/98, tudo a depender da comprovação do dolo ou culpa no caso concreto.
No que se refere ao entendimento da necessidade da dupla imputação penal nos crimes ambientais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AgR no RE 628582/RS (Ministro relator Dias Toffoli), decidiu que é possível manter a condenação da pessoa jurídica, ainda que fique comprovado que o seu representante legal não perpetrou o delito, porquanto a Constituição Federal (artigo 225, §3º) previu expressamente a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, conforme abaixo transcrito:
Art. 225 § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Nesse ponto, discorreu OLIVEIRA:
"(....) O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, decidiu em Recurso Extraordinário (RE nº 548.181/PR), no sentido de que a Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A razão de decidir do referido entendimento tem fundamento na realidade dos fatos pois as maiores agressões ao meio ambiente são perpetradas por pessoas jurídicas, vale dizer, por empresas durante a exploração de atividades econômicas, sendo que a responsabilidade dos dirigentes, alicerçada que está na tradicional teoria do delito, nem sempre se revela configurada, tendo em vista, dentre outros aspectos, a complexidade estrutural típica das grandes empresas. Em outras palavras, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal, a Mineradora Vale poderá sofrer sanções criminais ainda que não sejam identificados os dirigentes ou técnicos responsáveis pelo ato criminoso que resultou em grave dano ao meio ambiente e centenas de mortes. O entendimento do Supremo Tribunal Federal constitui relevante precedente para o qual devem atentar as empresas, pois, para além das elevadas sanções de natureza civil e administrativa, poderão ainda sofrer sanções na esfera criminal diante da prática de delitos ambientais, mesmo se não incluído, no polo passivo da ação, o indivíduo (ou indivíduos) diretamente responsáveis pelo delito ambiental, circunstância utilizada de forma recorrente para acobertar a responsabilidade das empresas por práticas altamente danosas ao meio ambiente."
Em relação aos delitos ambientais, os fatos podem ser tipificados, em tese, nos artigos 38, 38-A, 54 e 65, todos da Lei 9605/98, in verbis:
Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Art. 38-A. Destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 2º Se o crime:
I – tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;
II – causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;
III – causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade"
" Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II – arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa."
Além disso , as investigações podem concluir no sentido dos delitos de inundação e desabamento previstos no artigos 254 e 256, do código penal, consoante abaixo transcritos:
"Art. 254 - Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de seis meses a dois anos, no caso de culpa."
Art. 256 - Causar desabamento ou desmoronamento, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Modalidade culposa
Parágrafo único - Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de seis meses a um ano.
Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento
Em relação ao crime de inundação, preleciona ROMANO:
"...A conduta prevista é causar (provocar, motivar, produzir) inundação, entendendo-se ela como “o alagamento de um local de notável extensão, não destinado a receber águas”, como ensinou Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume IX, 1959, pág. 48) (...) Tal invasão ou alagamento, que é consequência da força natural da água, provocada pelo agente, pode ser violenta, como se vê no rompimento de dique, ou ainda lenta, como se dá com o represamento, instantânea ou continuada(...)"
No que diz respeito ao elemento subjetivo, argumenta-se acerca da incidência do dolo eventual ou delito culposo, ou seja, se os diretores, engenheiros e responsáveis pela barragem assumiram o risco da produção do resultado danoso ou se atuaram com negligência, imperícia ou imprudência. A título de esclarecimento, o dolo eventual e o delito culposo estão previstos no art. 18 do CP, in verbis:
Art. 18 - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Não se pode olvidar o fato de que deve ser comprovado o nexo de causalidade entre a conduta e o vínculo de que os agentes detinham o dever de agir para impedir o resultado, a teor do disposto no artigo 13,§ 2º, do código penal:
"Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)"
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Em suma, os responsáveis pela empresa e dos órgãos de fiscalização, que tinham ciência da precariedade da barragem, podem ser denunciados pelo Ministério Público por homicídio doloso (dolo eventual) ou culposo (negligência, imprudência ou imperícia), a depender da conclusão acerca do elemento subjetivo.
Registre-se que a responsabilidade criminal deve ser apurada sob o prisma da identificação dos que detinham o dever de agir para evitar o resultado (delimitação dos "garantidores"), e do incremento ou criação de risco proibido por parte da empresa e/ou dos responsáveis pela administração da barragem.
Nesse sentido, preleciona ESTELITA:
"(...) Talvez a única regra setorial dispondo sobre a posição de garantidor em nosso direito positivo seja a do art. 2º da Lei 9.605/1998, que impõe ao diretor, ao administrador, ao membro de conselho e de órgão técnico, ao auditor, ao gerente e ao preposto ou mandatário de pessoa jurídica o dever de impedir a prática criminosa de outrem, quando dela tiver conhecimento e quando podia agir para evitá-la. o dispositivo é redundante, já que, havendo necessidade de um fundamento material para a posição de garantidor, esta será baseada no controle efetivo sobre a fonte de perigo, sempre nos limites da possibilidade jurídica de agir do agente(...)"( p. 144)
Por fim, as apurações devem prosseguir com celeridade e eficiência, priorizando o trabalho pericial, depoimentos de testemunhas, e demais meios de prova admitidos, no intuito de que os fatos sejam esclarecidos em lapso temporal razoável e eficaz para a repressão aos danos causados e prevenção de repetição de fatos similares futuros.
REFERÊNCIAS:
ESTELITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão... São Paulo: Marcial Pons, 2017
Imagens aéreas mostram rastro de lama em Brumadinho; assista ao vídeo. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/imagens-aereas-mostram-rastro-de-lama-em-brumadinho- Acesso em 7 de fev. 2019.
MELODIAS, Ana. Disponível em https://saude-popular.org/2019/01/coluna-crime-ambiental-quais-os-impactos-a-saude-da-populacao-de-b.... Acesso em 07 de fev. 2019.
OLIVEIRA, Bruno Queiroz. A responsabilidade criminal no caso Brumadinho. Acesso em 06 de fev. 2019.
ROMANO, Rogério Tadeu. Inundação e perigo de inundação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4109, 1 out.2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32482>. Acesso em: 5 fev. 2019.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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