Réu é mandado para Júri 20 anos depois do fato
Primeiro, uma pequena explicação:
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Prevista basicamente no artigo 413 do Código de Processo Penal, a pronúncia é a decisão que, encerrando o sumário de culpa ou judicium accusationis, a primeira fase do rito especial escalonado do júri, envia o réu ao julgamento pelos jurados, por ter sido julgada admissível a acusação, reconhecendo a ocorrência de seus pressupostos, a competência do tribunal popular e classificando a infração penal com suas eventuais qualificadoras, além das infrações conexas porventura existentes.
Com efeito, dentro da bipartição fásica do procedimento do júri brasileiro, inspirada, desde 1822, na experiência do grand jury e do petty jury da Inglaterra, a pronúncia é exatamente o ato que encerra a primeira grande fase, na qual se produziram as provas e os argumentos das partes, propiciando a instauração da segunda, conhecida como judicium causae (julgamento da causa), na qual ocorrerá a sessão plenária em cujo transcurso efetivar-se-á a deliberação do conselho de sentença sobre o meritum causae.
Segue a decisão abaixo:
Por Clécia Rocha
DECISÃO DE
PRONÚNCIA
Vistos,
etc.
O Ministério Público
do Estado da Bahia, por meio de seu representante nesta Comarca,
ofereceu denúncia em face de XXXX, já qualificado
nos autos, imputando-lhe a prática do delito tipificado no art. 121,
§2º, incisos II e IV, do Código Penal.
Narra a peça
vestibular, que, no dia 16 de abril de 2000, o réu ceifou a vida de XXXXX, mediante uso de uma faca, fato
ocorrido na localidade de Barra XXXX, neste Município. Diz,
ainda, que segundo restou apurado, a briga iniciou-se entre pessoas
locais e um grupo de turistas, sendo que o homicídio ocorreu quando
a confusão já havia sido contornada.
Ademais, testemunhas
afirmaram que, após o término da confusão entre populares e
turistas, a vítima e outros colegas estavam tentando voltar para
salvador-BA, oportunidade em que encontraram o réu e uns amigos
próximos a um mercadinho. Ato contínuo, a vítima aproximou-se do
réu, e seus amigos, para perguntar se algum deles tinham visto o seu
tênis. Neste momento, achando que a vítima era um daqueles que
estavam na briga, o denunciado deu um golpe de faca no olho esquerdo
da vítima perfurando seu crânio e, em seguida, tentou dar-lhe outro
golpe sendo defendido pelo braço da vítima, perfurando seu
antebraço.
A
vítima saiu correndo do local do
fato e foi perseguida pelo réu, tendo este desistido da perseguição
quando avistou os amigos da vítima chegando. A vítima foi socorrida
por populares e conduzida ao hospital, mas veio a óbito, dias
depois, em virtude da gravidade dos ferimentos causados pelas
agressões acima descritas, restando evidenciado que a motivação do
crime foi fútil, pois a morte da vítima é totalmente
desproporcional a eventual agravo causado ao denunciado, bem como o
modo de agir do denunciado reflete traição, dissimulação e manejo
de recurso que impediu ou, pelo menos, dificultou a defesa da vítima.
Com a inicial
acusatória vieram os autos do inquérito policial nº 13/2000,
oriundo da DEPOL desta cidade (fls. 04/31).
Juntou-se aos autos o
Laudo de Exame Cadavérico, de fls. 134/137, e Certidão de Óbito de
fl. 22.
A denúncia foi
recebida em 04 de julho de 2000 (fls. 33).
O réu foi citado por
edital em 07 de junho de 2000 (fls. 37).
Houve suspensão do
processo e do curso do prazo prescricional em 19 de setembro de 2000
(fls.41).
O acusado juntou
procuração aos autos e constituiu Advogado para representá-lo em
Juízo, em dezembro de 2000, razão pela qual o prosseguimento do
feito foi retomado (fls. 103/108).
A prisão
preventiva do denunciado foi decretada em 05 de julho de 2000 já que
presentes os fundamentos da aplicação da medida extrema (fls.
34/35), tendo sido revogada em 16 de novembro de 2000 (fls. 131/132).
Foi oferecida a
resposta à acusação do acusado, por meio de advogado constituído
(fls. 142/143).
Em audiência de
instrução foram ouvidas as testemunhas às fls. 158; 159; 160; 178;
184; 185; 231; 232; 219; 220; 221 e 223. O denunciado foi interrogado
às fls. 138.
A instrução foi
encerrada e abriu-se vista para as partes apresentarem alegações
finais, inciando-se pelo Ministério Público.
Em sede de
alegações finais, em síntese, o Ministério Público pugna pela
pronúncia do réu nas reprimendas do artigo 121, § 2º, incisos I e
IV (fls. 235/239).
A
defesa, por seu turno, em sede de memoriais, sustenta a tese de
negativa de autoria, bem como pugna pela improcedência da demanda e
consequente absolvição do acusado (fls.240/244).
É
o relatório. Decido.
I) DO MÉRITO:
O réu está incurso
nas sanções do art. art. 121, §2º, incisos II e IV, do Código
Penal, que prevê o delito de homicídio qualificado por motivo
fútil, à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou
outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido, na modalidade consumada.
Como
se sabe, para efeito da decisão interlocutória “sub examen”,
nos termos do “caput” do art. 413 do CPP, basta ao Juiz
convencer-se da existência
do crime e de que haja indícios de que o réu seja o seu autor para
pronunciá-lo, a fim de que venha a ser submetido a julgamento
perante o Tribunal do Júri.
A
prova coligida nos autos é incontroversa quanto a ambos os
requisitos indispensáveis à decisão de pronúncia.
Da
análise dos autos restou evidenciada a materialidade do delito,
através da certidão de óbito de fl. 22 e o laudo de exame
cadavérico de fls. 134/137, os quais atestam, à respeito da causa
da morte da vítima: “traumatismo
crânio encefálico por ferimento de arma branca”.
Quanto
aos indícios suficientes de autoria, restaram revelados
satisfatoriamente, através das provas encartadas aos fólios,
mormente as declarações das testemunhas, tanto na fase
inquisitorial quanto em Juízo, sob o crivo do contraditório e da
ampla defesa.
Para melhor ilustrar, transcrevo trechos dos termos dos depoimentos:
Que
presencisou
o fato descrito na denúncia...Que quando se dirigiram para o ônibus,
o depoente percebeu que XXX e seus amigos se encontravam
próximos a um mercadinho, e quando chegaram próximo a eles, Carlos xx, a vítima, perguntou ao depoente e a XXX se viram seu tênis,
quando o depoente virou para responder, presenciou XXX dar um
golpe de faca no olho esquerdo de Carlos XX, retirou a faca,
tentou dar outro golpe tendo Carlos XXX colocado o braço e ainda
não satisfeito, Carlos XXX começou a correr e ele atrás, até
que Carlos cai e os demais que assistiram avançam sobre
verissom, que foge. (XXXX,
testemunha de acusação, fls. 161/161-A)
Que
assitiu
tudo, no que diz respeito aos fatos relatados na denúncia; que se
recorda que estava ao lado da vítima, quando ela foi golpeada pelo
acusado, tendo o falecido Carlos xxx, não
resistido aos ferimentos e faleceu no Hospital do Exército, depois
de alguns dias, na UTI do Hospital; que a vítima foi
golpeada de surpresa, pois a depoente não viu nenhuma briga entre a
vítima e o acusado, anterior ao crime; que a vítima estava
desarmada; (…). (XXX,
testemunha de acusação, fl. 178).
O
acusado, na fase judicial, afirma “que
presenciou um rapaz desconhecido quebrar uma garrafa e partir para
cima de XXX; que este foi atingido no pescoço; que o denunciado,
ao presenciar a cena, apanhou uma faca, não se recordando se na mesa
ou no balcão do bar, e partiu para cima desse rapaz em defesa de seu
tio; que recorda que atingiu alguém, mas não sabe quem foi; que não
sabe, também o local onde atingiu esta pessoa...que estava com medo
da reação dos parentes da vítima e por isso não se apresentou
antes; que se foi o responsável pelo ocorrido, deseja pagar na forma
da lei...”,
consoante
se depreende do termo de fls. 139/140.
A tese defensiva
sustentada em memoriais é a de negativa de autoria. XXX. Desta forma, não
cabe, neste momento, o acolhimento da negativa de autoria, devendo o
conselho de sentença decidir sobre tal questão.
Outrossim,
prescreve o art. 413 do CPP que havendo indícios de que o Réu seja
o autor do delito, impõe-se a pronúncia, a qual encerra mero juízo
de admissibilidade, cujo objetivo é submeter o acusado ao julgamento
popular, não incidindo aqui o princípio do
in dubio pro reo, mas
sim,
o in dubio pro societate.
Quanto
às qualificadoras, é sabido que pairando dúvidas acerca de sua
configuração, esta deverá ser dirimida pelo conselho de sentença
no Tribunal do Júri.
Neste momento processual, caberá ao juiz singular somente apreciar a
sua probabilidade de coerência e não fazer um julgamento prévio,
ou seja, deverá realizar um mero juízo de admissibilidade. Segundo
este posicionamento, só é possível excluir as qualificadoras
quando forem de todo improcedente e na hipótese de dúvidas, esta
deve ser dirimida pelo
Júri.
Este também é o posicionamento da jurisprudência, senão
vejamos:
STJ:
“ PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. EXCLUSÃO.
SENTENÇA DE PRONUNCIA. IMPROVIMENTO.
As
qualificadoras só podem ser excluídas da sentença de pronúncia
quando manifestamente improcedentes e descabidas, o que não é o
caso dos autos. Cabe ao Tribunal do Júri, que é o juiz natural para
julgamento dos crimes dolosos contra a vida, dirimir a ocorrência ou
não das qualificadoras. Recurso especial a que se nega provimento.”
(RESP
317828 / ES – Rel. Ministro JOSE ARNALDO DA FONSECA; DJ 02.12.2002
p.00333).
STJ:
“ PENAL E PROCESSUAL PENAL – HOMICÍDIO QUALIFICADO – PRONUNCIA
– EXCLUSAÕ DE QUALIFICADORAS – IMPOSSIBILIDADE.
-Conforme
entendimento desta Corte, as qualificadoras do homicídio só devem
ser rejeitadas, na pronúncia, quando manifestamente improcedentes.
Havendo indícios da imputação, devem ser mantidas.
-Ordem
denegada.”
(HC
18745 / ES – Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI; DJ 02.09.2002
p.00214).
STJ:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. JÚRI. EXCLUSÃO
DA QUALIFICADORA.
I
– As qualificadoras do homicídio só devem ser rejeitadas, na
pronuncia, quando manifestamente improcedentes (Precedentes). Havendo
indícios da imputação, é de se manter a qualificadora no iudicim
accusationis.
II
– No caso de dúvida, em fase de pronuncia, esta corre em desfavor
do réu por força do princípio do in dubio pro societate. Ordem
denegada.” (HC 16273 / PR – Rel. Ministro FELIX FISCHER; DJ
29.10.2001 P.00227)
Assim,
comprovada a materialidade e existindo indícios suficientes de
autoria, impõe-se o acolhimento integral da pretensão acusatória
em face de XXX
Isto
posto, com fundamento no art. 413 do CPP, JULGO PROCEDENTE O pedido para PRONUNCIAR XXX como incurso nas penas do art. 121, §2º, incisos II e
IV, do Código Penal PARA QUE SEJA SUBMETIDO A JULGAMENTO PELO
TRIBUNAL DO JÚRI.
Concedo ao réu o
direito de recorrer em liberdade porque não estão presentes
hipóteses que fundamentem a prisão cautelar.
BA,
04
de junho de 2020.
Juiz Substituto"
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